Omissão de Socorro, medicina e sociedade
**alerta gatilho**
“Embora alguns prefiram não lembrar disso, mas o próprio Freud disse que um dia seria possível tratar com remédios doenças mentais”. Freud realmente acertou, graças à evolução da tecnologia, medicina e da psiquiatria, hoje podemos não curar, mas estabilizar pacientes vítimas de doenças mentais, como disse o Dr. Valentim Gentil Filho em sua colocação no filme documentário Omissão de Socorro.
Direção, fotografia e montagem de Olívio Tavares de Araújo na e imagens feitas de 2001 até 2007, o filme mostra a situação deprimente de moradores de rua e de famílias com membros vítimas de alguma doença mental, e tudo isso com um recorte de classe. Visto que, a maioria das pessoas afetadas são de baixa renda ou estão em condição de miséria. Elas são as que mais sofrem com falta de atendimento público e a sua precarização e além disso o documentário relata o estado das novas clínicas psiquiátricas e suas práticas pós fechamento dos manicômios
Com uma montagem que transita em cortes abruptos entre discursos de pacientes e médicos profissionais da área, e junto uma trilha que vai de Bach e Debussy até Zé Ramalho, o filme tem abordagens acerca de religião, loucura, liberdade e antipsiquiatria. Colocar o microfone na boca de necessitados e ouvi — los foi um exercício de empatia e um estudo para a equipe. Ele traz essas discussões através de vários núcleos, pessoas com enfermidades e familiares, como é o caso do primeiro deles, a família de José. O caso de José e suas filhas é o mais intrigante e que mais ocupa tempo de tela, o pai da família não consegue internação e nem medicamentos para as filhas, e por conta disso vive em uma ambiente caótico de brigas e surtos. Só que o que mais me chamou atenção nisso tudo foi a fala do José em que diz que tudo começou quando a sua filha “voltou de um terreiro de macumba”.
Realmente existe uma certa “confusão” de uma pessoa em estado de psicose com alguém possuído e isso acontece com muitas famílias que possuem membros com algum tipo de doença mental, principalmente nos primeiros estágios(quando a pessoa tem sintomas de delírio). E é claro que isso é por conta de uma construção histórico-social de anos de racismo e preconceito que consequentemente gerou uma sociedade intolerante religiosamente, não à toa o tema da redação do ENEM 2020 foi sobre o estigma em relação aos problemas mentais, dada a relevância do assunto. E um desses estigmas é a crença de que um indivíduo com depressão, por exemplo, na verdade está com falta de espiritualidade ou alguém com esquizofrenia está manifestado por espíritos ruins. Muitos médicos psiquiatras relatam que, antes de ir em um hospital, a família passa por um padre ou pai de santo antes e todo esse percorre dificulta e atrasa bastante o tratamento, além de tudo, pode acentuar a gravidade da situação e fazendo com que os medicamentos parem de fazer efeito.
Além disso, com uma fotografia com vinheta e personagens no centro ou senão preenchendo quase todo espaço da tela, o longa também tem outros destaques. Como o curioso morador de rua com um chapéu de alumínio, que ao ver de primeira vista, o espectador pode achar que pode ser mais uma vítima portadora de alguma doença mental que está delirando. Entretanto, na verdade existe um pouco de racionalidade em seu discurso que fala sobre liberdade e loucura em que reconhece a sua condição e expõe um relato sobre a negligência do governo em relação à moradia, e a partir disso que tive o insight. Eis que vem o sentido do título, a omissão não vem dos pais, indivíduos ou familiares e sim do Estado.
Bom, de começo achei esse filme em um vídeo entrevista sobre esquizofrenia do Drauzio Varella com Rodrigo Bressan, médico psiquiatra autor do livro “Entre a Razão e a Ilusão: Desmistificando a Loucura”. Eu estava pesquisando sobre o assunto pois em Agosto de 2020 meu irmão foi internado em um hospital psiquiátrico, por lá ficou hospedado por um mês e saiu diagnosticado com esquizofrenia. No começo foi difícil, não consegui terminar o filme no primeiro dia, pois de fato é um experiência bem pesada e causa de certos gatilhos, e por isso esse documentário me fez pensar por dias.
Realmente a medicina psiquiátrica, em comparação aos manicômios, é deslumbrante, os níveis de evolução são muito bons, todavia, como nem tudo são flores, existem erros que percorrem até hoje e por isso ainda há muito o que melhorar. A prática defendida pelo segundo médico que aparece no filme é questionável, até hoje o tratamento da eletroconvulsoterapia é usado, porém, não é uma unanimidade única entre os médicos, pois mesmo com todos os cuidados ainda sim não é algo totalmente seguro. Os pacientes podem sofrer com náuseas, dores de cabeça e até mesmo perda de memória, e além do mais, remete às condutas antigas da antipsiquiatria em que usavam o “eletrochoque” como punição.
Não somente isso, mas também a questão dos remédios é duvidosa. E perceba, não estou aqui criminalizando psiquiatras e remédios, mas trazendo uma reflexão. Será que é realmente ético projetar congressos com seminários bancados pela Bayer ou Pfizer para médicos? E dar presentes como amostra grátis de seus remédios e oferecer a seus pacientes? É ético empresas financiarem notícias em telejornais e outros meios de comunicação? Freud realmente previu e acertou que tratamos doenças mentais com medicamentos, mas garanto que provavelmente não contaria com o advento do capitalismo monopolista financeiro.
É visto que atualmente os psiquiatras vem ganhando mais espaço que os psicólogos e o que poderia ser uma tristeza que pode ser tratada com práticas terapêuticas(meditação, aromaterapia, yoga,…), vira uma depressão ou o que pode ser uma falta de atenção psicológica, vira TDAH. Não quero nem de longe minimizar transtornos psiquiátricos, mas atentar que a indústria farmacêutica é setor que mais faz lobby e quem mais tem lucrado nos últimos tempos, e ainda conta com uma Bancada do Medicamento no Congresso, que inclusive tem uma bondosa doação para partidos em épocas de campanha. E então eu pergunto, a quem interessa a patologização radical da saúde mental da sociedade?
Em suma, Omissão de Socorro é sobre isso, um questionamento e desmistificação da loucura, é sobre dar um outro olhar para o outro. Estou aqui colocando uma defesa a uma medicina cujo veja o portador da doença como paciente e não como cliente, longe, uma psiquiatria mais humanitária de verdade, uma que o psiquiatra não seja um mero receitador de remédios e que tenha um enfoque em socialização dos afetados, assim como nos CAPS. E defendo, assim como proposto pelo médico Antonio Sitges-Serra, o empoderamento do paciente.