O ethos do nerd hoje: Uma etnografia virtual
Este trabalho etnográfico tem a pretensão de realizar um trabalho de campo virtual em grupos específicos da cultura pop. O objetivo é fazer uma análise de comportamento do estilo arquétipo do “nerd”. Para a realização da investigação, entrei em diversos grupos de Facebook, acompanhamento de canais do YouTube, perfis do Instagram e Twitter do meio da cultura pop e pesquisar o ethos que definem o estilo de nos dias de hoje, os debates e discussões que acontecem no meio.
INTRODUÇÃO
Antes de começar, quero fazer um breve balanço do que é ser nerd ao longo da história e como algumas parcelas dessa comunidade chegaram a ser consideradas de forma pejorativa. No passado, os “nerds” ocupavam uma posição inferior na hierarquia das relações de poder, pois aqueles que se autodeclaravam ou eram rotulados como nerds, sofriam repressões de grupos coletivos, como os valentões. No entanto, nos dias de hoje, o conceito de nerd passou por uma ressignificação no meio da cultura pop, ganhando um status de “cool”. Ao contrário do passado, agora não há mais vergonha em ser nerd, e sim orgulho.
No artigo intitulado “O nerd virou cool: identidade, consumo midiático e capital simbólico em uma cultura juvenil em ascensão”, Patrícia Matos (2011) disserta sobre como o nerd passou de um estilo ridicularizado para uma fonte de orgulho. De acordo com a autora, o nerd atual é alguém apaixonado por um tema específico, chegando a ser obcecado, pesquisando, colecionando itens e não descansando até entender completamente esse assunto.
“A definição atual de nerd o caracterizaria mais como uma pessoa que nutre alguma obsessão por um determinado assunto a ponto de pesquisar, colecionar coisas, escrever sobre e não sossegar enquanto não descobrir como funciona.” (MATOS, Patrícia)
Além disso, há outros termos como “geek”, frequentemente usado como sinônimo de nerd, porém sem a carga negativa. O geek é alguém com um forte interesse em tecnologia, computadores, gadgets, e assim por diante. Algumas pessoas acreditam que os geeks são mais sociáveis e se afastam do estereótipo do nerd.
“O termo “geek” aparece como sinônimo de nerd, mas sem a conotação pejorativa, e também como uma espécie de subgrupo. É usado mais frequentemente para designar jovens avidamente interessados em tecnologia, computadores, gadgets, etc. Há quem afirme que os geeks estariam mais distantes do estereótipo de nerd e conservariam somente o interesse em tecnologia e a inteligência supostamente acima da média mas teriam mais facilidades no convívio social.” (MATOS, Patrícia)
Também existe o termo “CDF” (Cabeça de Ferro), que no Brasil é usado como sinônimo de nerd. No entanto, a cultura nerd não se limita mais apenas ao desempenho escolar, sendo possível até mesmo que um nerd não tenha boas notas.
“No Brasil o termo CDF pode ser considerado sinônimo de nerd porém a cultura nerd, como se configura nos dias de hoje, não está relacionada exclusivamente ao desempenho escolar, sendo admissível até que um nerd não tenha boas notas” (MATOS, Patrícia)
Os nerds demonstram autoridade em todos os assuntos que lhes interessam e, consequentemente, podem se tornar os porta-vozes desses temas, tomando para si a liderança em determinados assuntos. O avanço da tecnologia contribuiu para a expansão do espaço dos nerds, pois eles eram um dos poucos grupos que possuíam maior familiaridade com gadgets, computadores, notebooks e tinham um bom conhecimento de softwares. Por isso, eles passaram a ser vistos como uma espécie de consultoria e conquistaram maior respeito por sua expertise.
Outra ideia associada aos nerds é que você pode se tornar um funcionário deles no futuro. O sucesso de figuras como Bill Gates e Steve Jobs — que são nerds desde a época da escola e se tornaram milionários — criou a percepção de que aqueles que foram oprimidos e ridicularizados durante o colegial podem se tornar seus próprios chefes.
Assim, percebemos como o conceito de nerd passou por uma transformação, saindo de uma posição estigmatizada para ser celebrado na cultura pop, com a valorização do conhecimento especializado e da obsessão por determinados temas.
METODOLOGIA
O que me motivou a realizar essa pesquisa foi o dia em que descobri um perfil no Twitter com mais de 89 mil seguidores chamado “Nerd Boomer Imagens”. Boomer é um termo criado para designar pessoas com idade entre 30 a 50 anos, fazendo referência ao Baby Boom — período de crescimento populacional significativo no mundo inteiro. Esse perfil funciona como um banco de imagens com capturas de tela de posts de várias redes sociais contendo conteúdo machista, muitas vezes racista e homofóbico.
Dentro desse banco de imagens, busquei encontrar grupos específicos que pudessem ser investigados nas redes. Devido à quantidade de conteúdos em perfis e grupos, optei por analisar postagens em um intervalo de 1 mês. Minha familiaridade com a cultura pop e seus diversos aspectos facilitou o entendimento das aflições e casos que ocorrem nesse meio durante esses períodos. Claro que houve algumas limitações no processo, que serão mencionadas mais adiante.
As páginas do Facebook e os grupos analisados são:
1. O Patriarcado
2. Macho Geek
3. Central HQs
4. TchêCraft
5. 4 Mundo
6. Quadrinhos DC & Marvel Publicados no Brasil
7. A Nerd sem Lacração
8. Nerd machine gun
9. RPG Alfa
Todas essas páginas e grupos apresentam um padrão de comportamento problemático que, de certa forma, se conecta com os estudos anteriores que buscaram entender o estilo nerd. Entretanto, a forma como os usuários se expressam na internet é mais extremista.
CULTURA POP E POLÍTICA
A primeira etapa da pesquisa envolveu acessar o banco de imagens do Twitter “Nerd Boomer” e coletar os nomes das páginas. No entanto, devido ao algoritmo das redes sociais, alguns conteúdos não foram exibidos para mim, pois a plataforma entendia que não eram de meu interesse.
Nos arquivos de mídia, encontrei 5.420 fotos e vídeos que possivelmente continham discursos de ódio relacionados ao meio nerd. Durante um período de 1 ano, coletei diversas características e comportamentos perturbadores presentes nos grupos analisados.
Entre essas características, a predominância estava na sexualização compulsiva de personagens femininos de desenhos, quadrinhos, games, etc. Recentemente, as empresas e produtoras do universo da cultura pop têm adotado mudanças em relação ao figurino das mulheres em seus produtos. Inicialmente, era comum que as mulheres fossem retratadas com roupas curtas, collants e decotes, enquanto os homens vestiam armaduras e uniformes que cobriam todo o corpo. O problema é que a maioria dos profissionais envolvidos na criação dessa estética são homens.
Isso torna evidente que a intenção era lucrar com a arte, em detrimento da objetificação do corpo feminino. Existem inúmeros casos disso, especialmente em jogos, que será abordado adiante.
Na figura abaixo (figura 1), podemos ver um exemplo de reação negativa de um nerd diante das mudanças no figurino de uma action figure de “Mestres do Universo: Salvando Eternia”. O administrador da página “Boteco Of Comics — Associados” faz um comentário crítico sobre a boneca da personagem Teela. Na figura 2, um novo administrador de outra página, que foi censurada, exalta os “velhos tempos” em que as mulheres dos desenhos animados infantis usavam roupas mais coladas. Na figura 3, outro administrador de outra página censurada ataca fãs que faziam cosplay de uma personagem dos quadrinhos.
A primeira página que investiguei foi a “Boteco Of Comics — Associados”, que conta com mais de 7 mil seguidores. Fiquei surpreso com o conteúdo das postagens, pois alguns memes possuíam um forte teor sexista e faziam piadas relacionadas às personagens femininas das obras. Além disso, havia ataques àqueles que discordavam das opiniões do grupo, como é o caso do site Omelete, apelidado de “Omeleft”. Esse site defende a questão da representatividade na cultura pop e que as artes são para todos.
A exigência pela sexualização compulsória de personagens femininas era bem presente nos conteúdos, assim como o incômodo dos membros da página ao se depararem com mudanças nos figurinos das personagens.
A segunda página que pesquisei se chama “O Patriarcado”, com mais de 2 mil seguidores no Facebook. A descrição da página menciona ser uma “página nerd contra o esquerdismo” e posta memes com uma postura politicamente incorreta e sem mimimi. A foto de perfil apresenta o personagem Rorschach, um anti-herói dos quadrinhos da Vertigo, com o símbolo e cores da bandeira nacional, indicando um teor político presente. As postagens variam entre celebração do meio nerd e comentários preconceituosos. Há uma implicância com o Movimento Feminista, com argumentos rasos e visões sexistas.
Casos de racismo eram frequentes na bolha, principalmente quando era divulgado uma notícia que apresentava um elenco novo:
A página “Macho Geek” também demonstra um grande incômodo com filmes com protagonismo feminino.
A página “A nerd sem lacração” levantou um questionamento, já que o nome sugere ser administrada por uma mulher. Isso despertou minha curiosidade em conhecer mais sobre os responsáveis pelos conteúdos, mas não foi possível identificar quem estava por trás dos perfis, pois geralmente usavam personagens de animes e desenhos em vez de retratos.
A invisibilidade nas redes é um aspecto importante a ser destacado. Os nerds frequentemente não usam suas fotos reais nos perfis, vivendo no anonimato, o que dificulta a coleta de dados relacionados à aparência, idade, raça, classe e gênero.
É relevante mencionar que, apesar de estar familiarizado com o universo da cultura pop, ainda existem limitações de compreensão, especialmente na área de jogos eletrônicos, na qual não estou tão familiarizado com os debates. No entanto, estou ciente da sexualização de personagens femininas nesse meio. Até o momento, essa foi a página com um conteúdo mais ameno, com reclamações sobre preços elevados e aumentos nos jogos eletrônicos, além do descontentamento com o excesso de roupas nas personagens femininas nos games.
A página “Nerd Machine Gun” foi a primeira a apresentar ataques ao cinema nacional:
No dia 30 de junho, a página “4 Mundo” que estava sendo investigada foi denunciada e perdeu as ferramentas de criação de conteúdo. Em resposta, os administradores criaram outra página com um nome parecido, chamada “4 Mundo Memes”. Na página original, também havia ataques ao cinema nacional, sem um motivo explícito, mas os comentários dos seguidores sugeriam que o filme “M3 — Quando a Morte Socorre a Vida” era visto como vitimista, e os filmes brasileiros continham atores sem talento. A página “RPG Alfa”, assim como as outras citadas anteriormente, apresentava posicionamentos políticos alinhados ao espectro de direita
EXCEÇÃO DA REGRA?
Antes de identificar-se como nerd, é importante reconhecer que outros atributos políticos, como o conservadorismo, podem estar associados a esse grupo. É possível notar algumas similaridades entre essas comunidades, especialmente no que diz respeito ao preconceito contra minorias. Contudo, é importante ressaltar que o grupo de nerds estudado em particular não representa a totalidade e que existem graus de variação dentro dessa comunidade.
Alguns grupos apresentam um discurso de ódio de forma mais amena, com menor índice de conteúdo ofensivo, enquanto outros estão totalmente focados nesse tipo de discurso.
Por outro lado, existem páginas que promovem discussões mais saudáveis e respeitosas, como o grupo “2Quadrinhos”. Para ingressar nesse grupo, é necessário passar por um processo seletivo que inclui perguntas como “Quais são seus quadrinhos favoritos?”, “Por que decidiu entrar no grupo?” e, mais interessante ainda, “Qual é a sua opinião sobre a diversidade étnica na cultura pop?”.
Essas perguntas demonstram que parte do coletivo aceita a diversidade e está aberta para a inclusão de novas pessoas. Isso sugere que há espaço para discussões mais inclusivas e tolerantes dentro da comunidade nerd.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante ressaltar que pessoas públicas também participam das discussões e, em alguns casos, interferem nas pautas propostas pelas obras. Em 2016, por exemplo, o Ex-Prefeito Marcelo Crivella censurou uma história em quadrinhos na Bienal do Rio de Janeiro que incluía um beijo homossexual. Esse episódio gerou grande repercussão na mídia e muitos internautas, fãs, influenciadores e políticos se manifestaram contra a atitude do prefeito.
Outra preocupação é em relação ao público das páginas mencionadas, uma vez que na cultura pop, grande parte da mídia é voltada para o público infantil, embora muitos adultos também consumam esse tipo de conteúdo. Isso significa que crianças podem ter acesso a discursos de ódio contra minorias que são disseminados nas redes sociais com temáticas nerds. Essa questão levanta a necessidade de debater quais efeitos podem ser percebidos a partir da disseminação desse conteúdo.
No meio nerd preconceituoso, o incômodo não está relacionado à falta de personagens cisgêneros, heterossexuais e brancos, mas sim com a inclusão de diversidade racial, de gênero e representatividade de minorias na cultura, algo que foi carente desde o seu surgimento. A busca por maior diversidade e representação é uma demanda importante na cultura pop, que deve ser abraçada para promover inclusão e respeito.
REFERÊNCIAS
MATOS, Patrícia. O nerd virou cool: identidade, consumo midiático e capital simbólico em uma cultura juvenil em ascensão. Intercom, Rio de Janeiro, 12 maio 2011.
JIMÉNEZ, Carla. STF proíbe censura de livros no Rio e dá recado contra discriminação. El País, São Paulo, 8 set. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/08/politica/1567961873_908783.html. Acesso em: 20 jul. 2022.
RPG Alfa. <https://www.facebook.com/rpgalfa>. Acesso em 20 Jul. 2022.
O Patriarcado <https://www.facebook.com/patriarcado10>. Acesso em 20 Jul. 2022.
Boteco Of Comics & Associados <https://www.facebook.com/Boteco-Of-Comics-Associados-100410165299556>. Acesso em 20 Jul. 2022.